Observatório do Cotidiano

Reflexões e artigos sobre o dia a dia, livros, filmes, política, eventos e os principais acontecimentos

quinta-feira, 18 de abril de 2024

O pálido ponto azul


Carl Sagan*
 
Olhem de novo esse ponto. É aqui, é a nossa casa, somos nós. Nele, todos a quem ama, todos a quem conhece, qualquer um sobre quem você ouviu falar, cada ser humano que já existiu, viveram as suas vidas. O conjunto da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas confiantes, cada caçador e coletor, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e camponês, cada jovem casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada professor de ética, cada político corrupto, cada "superestrela", cada "líder supremo", cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali - em um grão de pó suspenso num raio de sol. A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, pudessem ser senhores momentâneos de uma fração de um ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores de um canto deste pixel aos praticamente indistinguíveis moradores de algum outro canto, quão frequentes seus desentendimentos, quão ávidos de matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios. As nossas posturas, a nossa suposta auto importância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no Universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida. O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós próprios. A Terra é o único mundo conhecido, até hoje, que abriga vida. Não há outro lugar, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa emigrar. Visitar, sim. Assentar-se, ainda não. Gostemos ou não, a Terra é onde temos de ficar por enquanto. Já foi dito que astronomia é uma experiência de humildade e criadora de caráter. Não há, talvez, melhor demonstração da tola presunção humana do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, destaca a nossa responsabilidade de sermos mais amáveis uns com os outros, e para preservarmos e protegermos o "pálido ponto azul", o único lar que conhecemos até hoje. — *Carl Sagan foi um brilhante astrofísico

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Wolfsburg: a maior fábrica da Volkswagen no mundo


A fábrica emprega 5.000 robôs e 65.000 pessoas para fabricar 3.500 carros por dia.
Wolfsburg, a cerca de 220 quilómetros de Berlim pela estrada A2 e a 100 quilómetros de Hannover, é uma das maiores cidades da Alemanha. A cidade é conhecida por abrigar a sede da Volkswagen, que vende automóveis em 153 países a partir de 123 unidades de produção em todo o mundo. Deles, a fábrica de Wolfsburg é reconhecida mundialmente como a maior fábrica do mundo, em termos de área espalhada por 70 milhões de pés quadrados.
s números revelam o tamanho desta gigantesca fábrica. A fábrica emprega 65 mil pessoas (25 por cento são mulheres) e as linhas de produção têm 2,5 quilómetros de comprimento e 300 metros de largura. São necessários cerca de 14 dias para levar o protótipo a testes e as chapas metálicas são prensadas por numerosos guindastes e prensas enormes que variam de 50 toneladas a 7.800 toneladas, novamente consideradas as maiores do mundo. A fábrica é 98% automatizada e 5.000 robôs trabalham continuamente nas linhas de produção.

Os trabalhadores circulam em cerca de 7 mil bicicletas estacionadas dentro das linhas de produção. A fábrica automatizada oferece um milhão de variações aos seus clientes e todos os dias 3.500 carros em 5-6 famílias dos modelos mais recentes da Volkswagen saem da fábrica para serem enviados para várias partes do mundo, principalmente na Europa. Cerca de 1.000 caminhões circulam diariamente pelas instalações da fábrica com milhares de peças para serem montadas nesses carros. O espaço conta com cerca de 50 restaurantes para os trabalhadores, que servem mais de 50 mil refeições por dia e vende mais de oito milhões de enchidos, explica o guia.

Uma cidade medieval com história que remonta ao século XIII, Wolfsburg ganhou destaque depois que a Volkswagen criou uma cidade planejada ao redor do rio Aller em 1938 como a 'Stadt des KdF-Wagens bei Fallersleben' ou a 'Cidade do Carro KdF em Fallersleben' . A cidade foi criada em torno da vila de Fallersleben para abrigar os trabalhadores das fábricas da Volkswagen (carros populares) que montam o famoso Fusca. Graças à Volkswagen, agora a cidade de Wolfsburg é uma das cidades mais ricas da Alemanha e uma das suas principais cidades. A Volkswagen (VW) lançou centenas de carros Fusca nesta fábrica entre 1938 e 2003 e esses carros foram vendidos em todo o mundo. Com quase 2,2 carros produzidos, o Fusca foi o carro de plataforma única mais antigo e mais fabricado. Agora, ela fabrica carros VW modernos e populares, como o Touran, um MPV compacto e o Golf para a Europa e outros mercados selecionados.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Como a Grande Mídia mistifica e manipula as opiniões.

Luís Flávio Gomes*
Os que não são idiótes (no sentido grego: os que se voltam para a vida privada menosprezando completamente a vida pública) jamais podem ignorar como a grande mídia mistifica a realidade e manipula a opinião pública.

Todos os grandes meios de comunicação têm, naturalmente, suas preferências – partidárias, eleitorais, ideológicas e, sobretudo, pecuniárias. Já sabemos que nas democracias venais contemporâneas o dinheiro deslavadamente gera poder e que o poder desavergonhadamente gera dinheiro. A mídia, na medida em que filtra e manipula conteúdos, apresenta-se como uma das pontes privilegiadas de ligação dessa política institucionalmente argentária.

O linguista e sociólogo Noam Chomsky, professor emérito do Massachusetts Institute of Technology (em Boston) e tido pelo New York Times como “o maior intelectual vivo”, catalogou as dez técnicas de mistificação e manipulação promovidas pela grande mídia [1]. Trata-se de um decálogo extremamente útil, especialmente para aqueles que bravamente desafiam a inexpugnável ignorância diária. Vejamos:

1. A estratégia da distração. É fundamental, para o grande lobby dos poderes, manter a atenção do público concentrada em temas de pouca relevância (programas banais de TV, por exemplo), fazendo com que o cidadão comum se interesse apenas por fatos insignificantes. A exagerada concentração em fatos da crônica policial, dramatizada e manipulada, faz parte desse jogo.

2. Princípio do “problema-solução do problema”. A partir de dados incompletos, incorretos ou manipulados, inventa-se um grande problema para causar certa reação no público, com o propósito de que seja este o mandante – ou solicitante – das medidas que se quer adotar (é preciso dar voz ao povo). Um exemplo: deixa-se a população totalmente ansiosa com a notícia da existência de uma epidemia mortal (febre aviária, por exemplo), criando um injustificado alarmismo com o objetivo de vender remédios que de outra forma seriam inutilizados.

3. estratégia da gradualidade. Para fazer o povo aceitar uma medida inaceitável, basta aplicá-la e noticiá-la gradualmente, a conta-gotas, por anos – ou meses, ou dias – seguidos. É dessa maneira que se introduzem novas e duras condições socioeconômicas, em prejuízo da população. Tudo é feito e contado gradualmente, porque muitas mudanças juntas podem provocar uma revolução.

4. A estratégia do diferimento (adiamento). Um outro modo de fazer aceitar uma decisão impopular consiste em apresentá-la como “dolorosa e necessária”, alcançando-se momentaneamente sua aceitação, para uma aplicação futura (“piano piano si va lontano”, o equivale mais ou menos ao nosso “devagar se vai ao longe”).

5. Comunicar-se com o público como se falasse a uma criança. Quanto mais se pretende enganar o público, mais se tende a usar um tom infantil. Diversos programas ou conteúdos possuem essa conotação infantilizada. Por quê? Se nos comunicarmos com as pessoas como se elas tivessem 11 anos de idade, elas tendem a responder provavelmente sem nenhum senso crítico, como se tivessem mesmo 11 anos de idade (as crianças não conseguem fazer juízos abstratos).

6. Explorar a emotividade muito mais que estimular a reflexão. A emoção, com efeito, coloca de escanteio a parte racional do indivíduo, tornando-o facilmente influenciável, sugestionável. Essa é a grande técnica empregada pelo populismo demagogo punitivo.

7. Manter o público na ignorância e na mediocridade. Poucos conhecem, ainda que superficialmente, os resultados já validados das ciências (criminais, médicas, tecnológicas etc.). A manipulação fica facilitada quando o povo é mantido na ignorância; isso significa dizer não à escola de qualidade para todos.

8. Impor modelos de comportamento.Controlar indivíduos enquadrados e medíocres é muito mais fácil que gerir indivíduos pensantes. Os modelos impostos pela publicidade são funcionais para esse projeto.

9. A autoculpabilização. Todo discurso (midiática e religiosamente) é feito para fazer o indivíduo acreditar que ele mesmo é a única causa do seu próprio insucesso e da própria desgraça. Que o problema é individual e não tem nada a ver com o social. Dessa forma, ao contrário de se suscitar uma rebelião contra o sistema socioeconômico que marginaliza a maioria, o indivíduo se subestima, se desvaloriza, se torna depressivo e até se autoflagela (assim é a vida no “vale das lágrimas”). A culpa pelo desemprego, pelo não encontro de novo emprego, pelo baixo salário (neoescravizador), pelas condições deploráveis de trabalho, pelo insucesso escolar, pela precarização das relações trabalhistas, pela diminuição do salário-desemprego, pela redução das aposentadorias, pela mediocridade cultural, pela ausência de competitividade no mercado etc. é dele, exclusivamente dele, não do sistema.

10. Os meios de comunicação sabem mais de você que você mesmo. Eles conhecem nossas preferências, fazem sondagens e pesquisas, diagramam nossas inclinações políticas e ideológicas e, mais que isso, sabem como ninguém explorar nossas emoções (sobretudo as mais primitivas). Não se estimula quase nunca a reflexão. O sistema manipula e exerce um grande poder sobre o público, muito maior que aquele que o cidadão exerce sobre ele mesmo.

Faça bom uso deste decálogo.

[1] CHOMSKY, Noam. “Ecco 10 modi per capire tutte le bugie che ci raccontano”, em Latinoamerica e tutti i sud del mondo, números 128/130. Roma: GME Produzioni, 2014/2015, páginas 146-147.


domingo, 31 de março de 2024

A maldição do sucesso : o caso das Jubartes


Encalhou uma baleia viva. E tenho uma péssima notícia: ela vai morrer. E mais: isso é uma ótima notícia para a conservação. Não entendeu nada e ficou indignado? Pois é, essa é a reação da imensa maioria das pessoas quando nos deparamos com encalhes de baleias em nossa costa, um fenômeno cada vez mais regular devido ao enorme sucesso das ações de conservação. Quem não entende lhufas de Ecologia, nem de baleias, nem do histórico da batalha para salvar esses animais da extinção, fica urrando nas redes sociais ou nos botecos a cada baleia encalhada, em geral vociferando contra os projetos e as pessoas que trabalham na pesquisa e conservação desses animais de maneira séria e árdua, mas que, de um lado, não conseguiram atingir o nirvana de mentalizar para fazer seres de 40 toneladas voarem para longe da costa, e de outro, sabem que se trata de um processo natural e que, ainda que cada encalhe e morte nos pareça triste, deveria ser celebrado como uma grande conquista da conservação marinha no Brasil. É mais ou menos fato aceito que seres vivos morrem. Baleias são seres vivos, ou assim acreditamos. No final da década de 1980, quando a caça indiscriminada estava levando a maioria das espécies à beira da extinção, restavam na população brasileira de baleias-jubarte algo em torno de 300 a 500 animais apenas, escondidos no Banco dos Abrolhos. 

Em 1988, um projeto criado por jovens malucos e visionários se dispôs a mudar o destino das jubartes brasileiras. Começaram a estudar a espécie, monitorar seus movimentos, propor medidas de conservação, participar da formulação de políticas públicas nacionais e globais para protegê-las. Em 2014, ao remover a espécie da Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas de Extinção, o Ministério do Meio Ambiente premiou o Projeto Baleia Jubarte por seu papel fundamental na salvação da população brasileira de jubartes. Hoje, com 35 anos de esforços contínuos, estima-se que existam cerca de 30.000 animais na população reprodutiva brasileira. O efeito colateral desse sucesso retumbante para a conservação é que, a compensar em parte grandes taxas de nascimentos de baleias, há proporcionalmente uma taxa bastante grande de mortalidade natural. Baleias envelhecem, padecem de enfermidades, enfrentam por vezes eventos de nutrição inadequada em suas áreas de alimentação, e como resultado disso… morrem. 


Em condições normais, isso seria encarado com naturalidade. Uma baleia morta pode ser um evento triste, especialmente quando encalham vivas e demoram a morrer, nos fazendo sofrer junto com ela em seus últimos momentos. Mas expirada a vida, a carcaça de uma baleia não é desperdiçada no mundo natural. Ela contém uma enorme quantidade de biomassa, podendo alimentar diversos outros organismos, já seja numa praia em que aves, crustáceos e outros seres a aproveitam, ao boiar mar afora e alimentar tubarões e outros grandes peixes, ou no fundo marinho, onde especialmente a grandes profundidades uma “queda” de uma carcaça de baleia é uma benção para as comunidades de animais que vivem numa permanente escassez de comida.

O filhote de baleia jubarte foi encontrado na praia do Prado (BA) em avançado estado de decomposição e predação. Foto: Projeto Baleia Jubarte.
Mas não estamos em tempos normais. A humanidade ocupou as costas continentais e uma grande parte dela não está disposta a conviver com fenômenos naturais que não se adequem a suas visões românticas ou “higienizadas” da Natureza. Se a baleia morreu, bradam pela remoção imediata da carcaça (ante os olhares melancólicos das gaivotas e caranguejos que são privados do banquete). Agora, se ela demora a morrer, então bradam para que quem passou décadas salvando a espécie do desaparecimento imite o saudoso Mandrake e faça a baleia desencalhar num gesto hipnótico. Não rola, pessoal.
Aceitar que um animal majestoso e mitológico vai morrer inapelavelmente diante de nossos lacrimosos olhos é um exercício em estoicismo que muito poucos estão dispostos a encarar. Em vez disso, os projetos de conservação, os órgãos ambientais públicos e a própria imprensa são inundados por sugestões bizarras e reclamações iradas de quem “tem certeza de que daria pra fazer alguma coisa”. Mas em 99,9% das vezes não dá não, e mesmo quando dá, a baleia vai voltar pra costa e morrer, como aconteceu nesta semana com uma jovem jubarte encalhada no interior da Baía de Todos os Santos na Bahia. Ela podia nadar, mas vitimada por uma enfermidade anterior ao encalhe, voltava para as águas rasas. A baleia morre nesse caso da doença que a levou a encalhar, não do encalhe em si.

Achei necessário escrever e dizer neste espaço, da maneira mais clara possível: onde há mais baleias vivas, haverá mais baleias mortas. Mais encalhes. Mais episódios tristes do ponto de vista de um indivíduo isolado, mas que nos lembram da alegria de termos salvo as baleias da extinção. O que fazer a respeito? Não encher a paciência. Entender o contexto. Ajudar as baleias no seu dia a dia ajudando o planeta como um todo. Apagar a luz ao sair de um lugar, fechar direito a torneira, usar menos plásticos e defender os projetos que fazem conservação marinha ao invés de ficar buzinando cada vez que uma baleia encalha. Vão encalhar mais. E vão morrer mais. E apesar de isso ser triste, enfim entender que no fundo é o efeito colateral de muita coisa boa. 
José Truda Palazzo, Jr. / escritor, consultor em meio ambiente especializado em conservação marinha e tratados internacionais.

quarta-feira, 13 de março de 2024

Dias Perfeitos



Paulo Villaça*
Com meia dúzia de gestos, Hirayama dobra o cobertor, o colchonete e os guarda ao lado do travesseiro em um dos cantos de seu pequeno quarto. Depois de escovar os dentes na pia da cozinha e aparar o bigode usando o espelho que equilibrou acima desta, ele molha seus vasinhos de planta, veste o uniforme do trabalho, recolhe o celular, a carteira, o relógio e outros objetos que já se encontram alinhados sobre uma microprateleira ao pé da escada, compra um café em lata na máquina situada diante de casa e entra em sua van para iniciar mais um dia limpando os banheiros públicos de Tóquio. Executada por Kôji Yakusho com a economia de quem parece repetir aquela rotina há anos, a sequência é rodada por Wim Wenders e montada por Toni Froschhammer com a precisão de um relógio – e a partir dali, qualquer mínimo desvio dos gestos do protagonista ou mesmo dos enquadramentos de Wenders se tornarão tão impactantes quanto a explosão de uma bomba em um filme de ação. Mas quem é aquele homem e por que sua vida deveria ser a base de um longa-metragem de duas horas de duração? Seu trabalho é uma fachada para atividades obscuras? Ele possui algum grande segredo que levará a uma reviravolta ao fim do segundo ato? Ele se envolverá em um acidente ou em algum evento que o levará a revelar habilidades há muito abandonadas? 

Não. Ele é exatamente o que aparenta ser: um homem solitário com um emprego comum levando uma vida anônima. Escrito por Wenders ao lado de Takuma Takasaki, o roteiro de Dias Perfeitos não se preocupa com uma “trama”, com incidentes absurdos ou diálogos frequentes, permitindo que a narrativa seja construída através da observação do cotidiano de Hirayama e de seus gestos e olhares, apresentando-se como um estudo de personagem por excelência.


Exalando uma paz interior notável, Hirayama é um destes personagens que se tornam tão reais em sua complexidade e tão emblemáticos graças a uma performance sem um único instante de artificialidade que, desconfio, a imagem de seu figurino de trabalho – um macacão azul com uma toalha branca enrolada no pescoço – se tornará tão reconhecível para os cinéfilos quanto o terno e gravata pretos acompanhados de óculos escuros de Marcello Mastroianni em Fellini 8 ½ ou o vestido, colar de pérolas, tiara e piteira de Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo. Quase sempre em silêncio, o sujeito executa suas tarefas com a dignidade de alguém seguro do valor do que faz ainda que muitos tendam a enxergar sua profissão com preconceito e até repugnância (como a mãe que, em vez de se mostrar grata por Hirayama ter encontrado seu filho pequeno, tem o impulso imediato de passar um pano com álcool nas mãos do menino).


Não que Dias Perfeitos sugira que o protagonista gosta do que faz (ou não); para ele, aquele é um ganha-pão que lhe permite atravessar a cidade e observar as pessoas – e se executa seu ofício com diligência, é porque jamais lhe ocorreria ser negligente com qualquer trabalho que tenha se disponibilizado a realizar. (Aliás, os designs dos banheiros de Tóquio representam uma atração à parte.)

Aproveitando cada momento de pausa – como ao esperar que alguém termine de usar o sanitário – para apreciar o céu, as árvores, as sombras, os reflexos e as cores do mundo ao seu redor, Hirayama não é composto por Yakusho como um misantropo; ao contrário, seu olhar geralmente gentil sugere um encantamento pelo comportamento alheio e pelos pequenos ou grandes dramas e alegrias que testemunha em seu dia a dia (e a partida de jogo da velha que disputa com um desconhecido através de um papel escondido em um dos banheiros comprova sua disposição em interagir de algum modo com outras pessoas). Além disso, esta generosidade é direcionada também à natureza não só através das plantinhas que cultiva (e que resgata), mas também das fotos que tira e arquiva com o mesmo cuidado com que faz todo o resto.


Então por que tamanha solidão? Por que viver de um modo tão espartano, usando banheiros públicos para se banhar e fazendo as refeições sempre no mesmo restaurante localizado no acesso subterrâneo ao metrô, alterando este hábito apenas no domingo? (O que não deixa de ser outro hábito.) Por que levar uma vida tão rotineira que até seus sonhos parecem se limitar na maior parte do tempo ao que viu ao longo do dia? Quando sua sobrinha aparece sem aviso, ele se mostra preocupado, mas acessível – mas também ansioso para retornar à rotina. E mesmo que a sugestão de um passado traumático surja em certo ponto, ele não demonstra rancor ou resistência à mesma irmã com a qual deixou de ter contato há anos.

Pois a verdade é que, por mais que o estilo de vida de Hirayama possa soar como um mistério a ser solucionado pelos espectadores que não concebem a possibilidade de que não haja nada a solucionar, ele é perfeitamente feliz – ou no mínimo contente – com o que tem, dedicando-se à leitura todas as noites antes de dormir e ouvindo as músicas em suas fitas cassete cujo valor ele mensura através dos sentimentos que despertam, não de sua raridade. Hirayama não precisa aceitar a vida que tem; ele a escolheu e se mantém em paz com a decisão.


Algo que o plano final desta obra-prima salienta ao ilustrar como a felicidade não preclude a tristeza ocasional e que ter a capacidade de se emocionar com as pequenas coisas – até com o nada – é uma virtude, não um problema.


*Pablo Villaça, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. 



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